Justificativa

Na história do pensamento social, não foram poucas as vezes em que as ideias procuraram se antecipar à realidade material. No afã de apreender o novo e estabelecer rupturas (simbólicas, analíticas, críticas), escritores, artistas, filósofos, sociólogos, antropólogos, historiadores e cientistas políticos lançam mão dos mais diferentes esquemas interpretativos, do uso de metáforas aos usuais expedientes mecanicistas do tipo causa-efeito.

Note-se, por exemplo, a ideia de “aldeia global” para expressar a emergência de um mundo que se globalizou. Essa analogia não produziria uma leitura impressionista da realidade? Afinal, a sociedade é muito mais complexa do que sugere a metáfora, porquanto é dividida em classes sociais, grupos de interesses, renda, religião, etc. O mesmo parece acontecer em relação às transformações pelas quais o mundo do trabalhou passou nas últimas décadas. Não foram poucos os que anunciaram que o trabalho não era mais uma categoria explicativa da realidade social, posto que havia sido substituído (ou transformado) pelo conhecimento, pela informação, ou até mesmo pelo ócio – em que pese o fato da incorporação ao mercado
mundial de milhares de trabalhadores chineses, indianos, bem como daqueles vindos das ex-repúblicas soviéticas.

A complexidade do tema e de seus desdobramentos para os mais diversos campos (ciência, cultura, arte, comportamento, educação, para citar apenas alguns) evidencia que a redução da realidade a esquemas interpretativos pode ser um equívoco, mas seria igualmente equivocado desconsiderar todas as questões que esses esquemas procuram explicitar. Por mais imprecisos que sejam, há que se levar em conta que possuem, pelo menos, um mérito, qual seja: reconhecer a especificidade de dado momento histórico. Cabe, portanto, ao próprio pensamento social, por meio do debate, esclarecer em que lugares e circunstâncias são aplicáveis ou não. No caso do mundo do trabalho, o fato é que os processos de globalização econômica e tecnológica, e de reestruturação do capital, impuseram mudanças significativas nas formas sociais e técnicas do trabalho, seja nos âmbitos externo e interno da classe trabalhadora, seja nos setores primários, secundários e terciários da economia, seja no campo ou na cidade, ou ainda no trabalho intelectual e manual.

No tocante aos rearranjos externos, deve-se assinalar a transição do trabalho fordista, ilustrado, fidedigna e brilhantemente, em Tempos Modernos, de Charles Chaplin, para o chamado modelo toyotista de produção e acumulação flexível. À diferença da organização fabril, maquínica, concentrada, cronometrada e em série da primeira metade do século XX, a partir dos anos 1970, viu-se emergir novos processos de produção caracterizados por um maquinário informacional, pela produção desconcentrada e descentralizada, e por regimes flexíveis de execução das tarefas e da jornada de trabalho – tanto é, assim, que foi-se o tempo em que uma empresa era considerada grande e forte por empregar 30 ou 40 mil trabalhadores.

No atual padrão toyotista de produção, ganham expressão o trabalho em tempo parcial, as práticas de home-office e, sobretudo, os fenômenos de terceirização e quarteirização das atividades. Diante dessas transformações, alguns sociólogos do trabalho ganharam fama ao “profetizar” o fim do trabalho alienado e rotinizado do chão da fábrica. No entanto, a experiência empírica tem demonstrado um quadro mais problemático e complexo, a começar pelo desemprego estrutural e pela generalização do trabalho informal, que, por sinal, não se restringem mais às economias periféricas. Por outro lado, há que se observar, também, as desigualdades que o processo produz, em parte porque esse novos arranjos externos não se realizam de forma homogênea. Em muitos lugares, e em muitos setores da economia, os antigos padrões produtivos ainda resistem, sobretudo porque o novo recria o velho como condição de sua própria reprodução, a exemplo das características fordistas do trabalho de atendentes de telemarketing e arrumadeiras de quarto de cadeias hoteleiras transnacionais.

Todas essas mudanças afetaram ainda as estruturas simbólicas, as relações do homem com o espaço, o tempo, o corpo e o sentido, provocando transformações em múltiplos níveis e dimensões, inclusive físicas, psíquicas, filosóficas e até artísticas. O que dizer, por exemplo, das mudanças ocorridas nos padrões de sociabilidade, vida cultural e consciência da classe trabalhadora? Qual seria o tipo de ser humano capaz de prosperar em condições tornadas tão flexíveis e voláteis? A erosão das formas regulamentadas de trabalho e das instituições que as acompanhavam significam maior liberdade para que cada um construa a narrativa de sua própria vida? Ou, ao contrário, corroem o caráter do indivíduo, ao jogá-lo no turbilhão da obsolescência programada de produtos, tecnologias, técnicas, tarefas e capacitações? Por outro lado, seriam os sindicatos verticais, masculinizados, que abrigavam trabalhadores com direitos, capazes de representar uma classe trabalhadora, agora em grande parte, formada por mulheres e terceirizada? Estaria a representação sindical e partidária fadada ao fim? Além disso, quais seriam as possíveis novas formas de organização e mobilização da classe trabalhadora que se avistam no horizonte?

Não menos problemático é o mundo do trabalho visto sob o ângulo das relações campo-cidade. Realmente, a reprodução ampliada do capital em escala global impulsiona os processos de modernização e urbanização do campo. A construção de usinas produtoras de energia em áreas indígenas, quilombolas e sertanejas, a expansão do agronegócio sob os auspícios de grandes corporações do setor energético, alimentício e automobilístico, e a apropriação dos excedentes da agricultura familiar pela agroindústria são fenômenos que respondem a um mesmo comando. Em todos esses casos, porém, o fato desalentador é que, na esteira de tais processos, formas arcaicas, tradicionais e violentas de trabalho são não apenas recriadas pelo moderno, como também modernizadas, isto é, aperfeiçoam-se como modo arcaico de exploração da força de trabalho. No caso das cidades, o quadro é semelhante: terciário inchado e informal que se combina, dialeticamente, com setores industriais de ponta; degradação e precarização das condições de trabalho na construção civil-urbana, trabalho escravo-imigrante estruturando a indústria global da moda, entre outros exemplos.

Por último, mas nem por isso menos crítica, tem-se a questão do trabalho intelectual. Se é verdade que, pelo exposto, a imagem de empresas “sem trabalhadores” é ilusória, certo é que o trabalho manual, em alguns setores, foi sendo, gradativamente, substituído por funções de controle e gestão, num movimento em que as fronteiras que separavam o operário do engenheiro parecem diluir-se. Desse modo, passou-se a exigir do trabalhador uma competência cada vez mais multidisciplinar. Daí o desafio: como desenvolver novas capacitações, como descobrir capacidades potenciais, à medida que vão mudando as exigências da realidade? Atrelado a esse desafio, ganha fôlego a perspectiva pluriinterdisciplinar no campo das ciências. Exige-se, por exemplo, do aluno e, principalmente, do professor, uma formação multifacetada. Mas, afinal, seria possível reunir, sob novas condições, as divisões, absolutamente singulares na história humana, que a ciência moderna impôs ao pensamento? Ademais, a formação criativa e holística do novo profissional serviria a quais propósitos: ao enriquecimento cultural e espiritual da pessoa humana, ou aos imperativos do sistema econômico? O tempo da reflexão científica equivaleria ao tempo do mercado? E mais, que tipo de reestruturação simbólica é ativada quando se vincula ao trabalho intelectual, educacional ou artístico a demanda por “meios e fins” do trabalho tecnicista/tecnocrata? O que o império da funcionalidade e da utilidade traz ou pode trazer para o pensamento do futuro, para o modo como homens e mulheres se relacionam, pensam, sentem e se comunicam?

Aprofundando no debate dos limites, desafios e possibilidades que cercam, atualmente, o mundo do trabalho, a IV Semana de Humanidades da UFVJM busca estabelecer um espaço de diálogo e reflexão sobre a centralidade do trabalho na atualidade, tendo em vista as transformações pelas quais as atividades laborais vêm passando em suas mais diversas dimensões. Tal discussão, cumpre lembrar, não é apenas necessária em nível global, porquanto se insere nas problemáticas vivenciadas pelos trabalhadores dos vales do Jequitinhonha e Mucuri, seja, por exemplo, do ponto de vista da atividade garimpeira, seja no tocante aos profissionais de ensino formados pelas instituições universitárias e técnico-profissionalizantes recém-instaladas na região, ou ainda pela labuta daqueles que correm atrás das promessas de geração de renda e emprego no campo do turismo. Enfim, trata-se de aprender o singular em suas determinações globais, bem como, por meio da análise do trabalho singular, local, iluminar o entendimento do trabalho global,  transnacional.

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